Quarto da Aixa

O meu despertador tocou à hora habitual. Às sete da manhã. Remexi-me na cama e espreguicei-me. Foi quando me virei para o lado que me dei de caras com Trevor. Apressei-me a sair da cama.

Depois daquilo, não voltei a acordar nem a ter pesadelos. Quando acordei, vi que não estava na sala e vi... Aixa. Esfreguei os olhos  e olhei em volta. Aquilo era um quarto femenino - Oh... eu nem me apercebi que isto era o teu quarto. Desculpa lá. 

Desliguei o despertador. - Tudo bem, não faz mal. - encolhi os ombros. Ele dormira ali a resto da noite toda? Nem queria pensar se eu tivesse consciente, nas olheiras que teria. - Bem.. eu gostava de me ir vestir e afins..

- Ham... sim, claro. Desculpa. E eu vou andando . - Levantei-me e dirigi-me para a porta. Já devia ter ido embora há muito.

Eu fui acompanhá-lo à porta. Haviam imensas coisas destruídas lá fora. Mas felizmente o temporal já tinha cessado. - Hum.. obrigado por me teres ajudado, levado a casa e isso.

- De nada - Olhei-a, agora já mais tranquilo por saber que ela estava bem - Eu vou falar com o diretor, pelo sim pelo não. Se elas te fizerem mais alguma coisa, dizes-me - E aquilo não era um pedido.

Abanei a cabeça. - Tudo bem, eu digo. - depois de ele se ir embora, fechei a porta e fui arrumar-me e preparar-me. Hoje seria outro dia, não podia nem devia pensar nos acontecimentos de ontem. Afinal, isso só me ia atrapalhar na dança. Tinha que levantar a cabeça e seguir em frente.
Saí de casa.

encerrado.

Eu estava sozinha em casa. Maya não me atendia e Will não se encontrava com o telemóvel ligado. Atirei-me para a minha cama e abracei-me ao meu corpo e comecei a chorar. Eu tinha ficado apavorado com as ameaças das miúdas. A minha perna doía, estava ligeiramente negra e cheia de marcas.

Quando cheguei lá, pensei em bater à campainha mas os velhos hábitos militares fizeram-me procurar as chaves e entrar sorrateiramente. Não se ouvia nada sem ser um choro leve. Eu já ouvira aquele choro antes. Um mau pressentimento instalou-se no meu peito. Subi até ao quarto de Aixa e lá estava ela, em lágrimas - Aixa... O que é que aconteceu?

O que é que Trevor estava ali a fazer? E como.. Ainda por cima, ele vira-me novamente a chorar. Tentei limpar as minhas lágrimas. - Não.. não aconteceu nada. Deixa-me em paz.

Revirei os olhos. Mentira mais óbvia não podia haver - Faltaste ao treino e sei que nunca faltas aos treinos. Por isso só me ocorre uma coisa: que voltaste a ser incomodada por aquelas quatro  - Aproximei-ma da cama, com os braços cruzados ao peito - Conta-me - Praticamente exigi.

Com ele ali, eu sentia-me menos aterrorizada. Mas o meu corpo continuava a tremer e não queria falar sobre aquilo. - Não se passou nada. Esquece isso. Está tudo bem. - passei uma mão pela perna. - Mas eu vou sair da tua turma.

Aproximei-me mais, insatisfeito pelas coisas que ela me dizia. O meu olhar parou na perna dela, que estava marcada. Transbordei de fúria ao perceber que eram marcas muito recentes. - Não está tudo bem e é isto tipo de coisas que tens de denunciar - Olhei-a - Isso não vai acontecer. Não podes desistir por causa delas. Não o permito.

Ele não entendia e eu também não estava disposta fazê-lo entender. Elas eram quatro, mais velhas que eu e bem mais fortes. Afastei a minha perna do seu olhar. - Eu não quero saber. Eu prefiro desistir. Denunciá-las não vai fazer nada!

Se havia coisas que eu não tolerava era desistências. Sabia que Aixa tinha um potencial elevado e que não o podia desperdiçar por causa das raparigas - Não queres ser bailarina?

Aqui o que estava em causa não era eu ser bailarina. Era eu sofrer atentados daquelas quatro. Encolhi os ombros e abanei a cabeça. - Sim. Mas posso sê-lo se mudar de turma, ou de conservatório.

- Não tens mais nenhum conservatório em Sydney. E o que te garante que entras noutro? - Fitei-a duramente - Digo.te por experiência própria. Ao longo da carreira de um dançarino vai sofrer atentados, fisicos e verbais. A inveja é uma coisa humana. Se desistes agora, ainda no principio, lamento dizê-lo mas não vais ter a mínima hipótese no futuro.

- Eu não estou a desistir da dança. - suspirei. E eu não precisava de ficar ali. Fugiria para outro país se fosse preciso. Só não queria passar por aquelas coisas. - Só estou a desistir da tua turma.

- Mais vais desistir deste conservatório só porque te estão a tentar deitar a baixo. Sabes que mais? Estão a conseguir - Retorqui. - Hoje a minha turma, amanhã outra oportunidade qualquer. Tens é de enfrentar o problema, não fugir dele. - Já me estava a irritar de ver assim por isso desci, fui até à cozinha, procurei por gelo e trouxe.

Era muito fácil dizer aquilo, quando não era ele que sofria. Calei-me. Ele no fundo tinha razão. Trevor voltou ao meu quarto, alguns minutos depois. Trazia gelo. Fiz uma careta e pousei-o na minha perna. - Obrigada. - murmurei. - É por causa dela, que não danço daquela forma todos os dias. - apontei para todas as cicatrizes da perna. Por mais anos que tivessem passado, depois do acidente, por vezes ainda doía.

A perna dela tinha cicatrizes além das marcas recentes. Não tinha reparado nisso antes. Também eu tinha umas quantas cicatrizes. - O que é que se passou? - Perguntei e sentei-me na ponta da sua cama - Tem de haver uma forma de contornares o problema.

Eu nunca falara aquilo com ninguém, apesar de a maioria das pessoas saberem do sucedido. Dera em todos os jornais. - Er.. eu tive um acidente de carro. Os meus pais morreram e eu e o meu irmão fomos os únicos sobreviventes.. - suspirei. - Acabei por partir a perna, porque ficou presa numa das partes do carro. - encolhi os ombros. Tivera sorte, muita sorte por não ter sido amputada. - Mesmo que elas sejam expulsas, vão atormentar-me..

E eu que sempre pensara que ela não se esforçava por ser uma rapariga mimada. Afinal não era nada do género, ela era uma guerreira. Um tipo de ferimento daqueles, ainda por cima permanente, era uma dor sempre presente. Aquilo fez-me vê-la com outros olhos - E continuaste a dançar, mesmo depois. E bem, ainda por cima - Acabei por comentar. Eu sabia o que era ter ferimentos que impediam de dançar.  - Só te atormentam se as deixares.

- Eu entrei para a dança, logo depois que recuperei. Acho que foi por isso.. - tinha-me agarrado à dança, para afastar os meus problemas. - Elas vão sempre atormentar-me. Mesmo que ignore. Elas são más.